George Sander - Visconde de Mauá 29 de abril de 2012.
Atravessado por estados de liminaridade¹ entre zonas fronteiriças do que se é, à julgo, profanas e sagradas. Não se diga a sacralização do profano, nem sequer a profanação do sagrado. Momentos de permeação, que dialogam ao corpo e que, trazidas nas costas da escuridão dentro de nós, como que coagindo, a retratarmo-nos em seu estado mais insólito, depreciado e visceral.
Revisitar-se, movendo direta (e positivamente) com as vísceras, o sexo, a libido (Eros) residindo o risco exponencial de sair-se "fora do controle". É em Hijikata e em sua dança das trevas [Ankoku buto]² - que nos atravessam por suas cartografias dos movimentos de morte, ancestralidade e putrefação- que descobrimos esse corpo-cadáver- através de uma investigação de corporeidades, movimentos e códigos perante a cosmogonia dos povos da rua: malandros, exus e pombas-gira da Cultura Africana e Afro-brasileira.
Corporear através dos fluxos incessantes dos pensamentos-imagens³ atentos ao fato de que as fronteiras não obedecem a limites geopolíticos, é estar a procura de novas possibilidades recombinantes das chamadas geografias imaginativas⁴. É reconhecer que o transito do corpo com o ambiente, como a porta dessas conexões, pode nos levar a um não território bastante complexo : o das intermediações.
Vívido de múltiplos escárnios, decompondo-se entre estranhos ritos-espetáculos de nossa miséria e marginalização, o corpo-recusa⁵torna-se mediador transpassado pelos interstícios da cidade à margem. Intestinos do corpo social. Espinhos estilhaçados espalhados nos becos, pontes, noites a fim, a imergir nas calçadas-dormitórios os bêbados, moradores de rua, drogados, mendigos, vagabundos, crianças-cabides, prostitutas... Tabus consórcios à vista grossa de morte psíquica, física e social. Exú⁶ limiar entre vícios, prazeres, degradação.
¿De que lado estar dessa encruzilhada⁷ aberta aos seres despachados¿
Através da contradição e o peso da vida há uma expansão de nossos sentimentos, desejos e decepções mais profundos, estes por sua vez de naturezas intrapsíquica e exterior, o homem se revela em suas necessidades básicas e desejos, poder e entendimento.
Neste novo dia que começa à meia-noite, somos todos Exús, Dionísio e Shiva que zombam das regras morais e da ordem social (zombam e riem-se !) opondo-se à ambição destruidora da cidade e ao moralismo enganador que a dissimula⁸. Religare a Natureza e o Eros. Mitos como rememoração⁹ - alusão ao corpo-cadáver que não pode mais lutar contra o aniquilamento de suas forças. Sacralização do Mundano pois é preciso brincar com a vida para assim, combater com eficácia a própria morte¹⁰.
Dança-Epifania de 8 giras em Afro-Butoh¹¹ na encruzilhada beira-rio Paraíba do Sul (...) de joelhos ligeiramente dobrados, os pés plantados no chão, as mãos nos quadris, o pescoço esticado, a cabeça arremessada para trás e a boca aberta num sorriso indiscreto ou, as vezes, saboreando uma sonora gargalhada... imantados por sonoridades urbanas, corpos que compactuavam com a atmosfera nua e crua da madrugada de poucos transeuntes, gritos dispares, mendigos, menores de rua, bêbados, carros... alguns compactuaram seus corpos, cigarros, risadas, bebidas, prazeres... Dança se fez carne-escárnio! Louvação.
Afrofuturismo¹². Exú-Samurai. Afro-Butoh.
Reflexão acerca do Espetáculo "Na Encruza" realizado em 21 de janeiro de 2012 em homenagem ao butoísta Tatsumi Hijikata e Exú.
1.Liminaridade é um estado subjetivo, de ordem psicológica, neurológica ou metafísica, consciente ou inconsciente, de estar no limite ou entre dois estados diferentes de existência. A liminaridade, ou fase liminar, é a fase intermediária entre o distanciamento e a reaproximação em que as características do indivíduo que está transitando são ambíguas, misturando sagrado e profano. E que os ritos de passagem se dão com uma simples ida para o estado sagrado e, posteriormente, a volta ao estado profano original. [Liminaridade e Communitas em Victor Turner]
2. Ankoku buto - dança das trevas, criada em 1959 por Tatsumi Hijikata, em Tóquio, Japão. O Butô entendia as ações das leis físicas sobre o corpo morto e seus processos naturais de decomposição como modo de afirmação da vida em seu sentido ampliado: replicação e continuidade. ["O Teatro Nô e o Ocidente". Christine Greiner. Annablume-FAPESP. 2000. pág.94-95].
3. Segundo o neurocientista Antônio Damásio, as imagens são construídas quando se mobiliza objetos (pessoas, coisas, lugares etc ), de fora do cérebro para dentro e também quando reconstruímos objetos a partir da memória e imaginação, ou seja, de dentro para fora.[ "O Corpo - pistas para estudos indisciplinares"- Christine Greiner- Annablume. 2005]
4. Edward W. Said em "Orientalismo , o Oriente como invenção do Ocidente" - [Cia das Letras. 1996]. Said completa a discussão sobre o fluxo de informações, chamando a atenção para o fato de que as fronteiras nunca obedecem a limites geopolíticos, mas antes de mais nada estão nas possibilidades de reinvenção e remapeamento incessante, das chamadas geografias imaginativas.
5. Corpo-recusa . Fabiane Moraes Borges em "Domínios do Demasiado". 2010.Editora Hucitec- SP.
6. “Exu, símbolo da descendência, da intercomunicação e da participação, assim como da sexualidade ou fertilidade, não é apenas uma divindade estruturada, mas um princípio estruturante do universo. No pensamento religioso africano, Exu está relacionado ao número 1 (um), ou seja, o acréscimo que propicia a continuidade e a dinâmica dos fenômenos(...) O Exu existente em cada indivíduo confere-lhe a sua identidade terrena e cósmica(...) Os homens, através de Exu, atuam no mundo, rompem as barreiras que limitam a sua realização, transgridem algumas vezes as normas e valores da cultura dominante, na procura de uma nova ordem que traduza os seus anseios e aspirações” (Liana Trindade – “Exu: Poder e Magia”).
7. Na concepção filosófica de muitas culturas africanas , assim como nas religiões afro-brasileiras, a encruzilhada é o lugar sagrado das intermediações entre sistemas e instâncias de conhecimentos diversos, sendo frequentemente traduzidas por um cosmograma que aponta para um movimento circular do cosmos e do espírito humano que gravitam na circunferência de suas linhas de interseção(...). Operadora de linguagens e de discurso, as encruzilhadas, como lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais.[ Leda Martins em "Performance do tempo e da memória - os congados". O Percevejo nº 12. 2003. UNIRIO]
8. Alain Daniélou . "Shiva e Dionísio- A religião da Natureza e do Eros".[ Ed. Martins Fontes - SP. 1989. pág 85-96]
9. "Mito como narrativa, mito como rememoração, mito como alusão, mito como celebração, mito como locus da hierofania, pré-logos, derivação, parábola, metáfora - mito como uma postura, (...) enquanto narrativa, a fala do mito, verbalizada ou na via da escrita, implica signagens derivativas. A cena mítica, momento de permeação ou reapresentação do fenômeno primeiro, investe-se pelo seu caráter direto com a experiência, plena de visibilidade e sensória, de uma potência superior as narrativas (...).Renato Cohen em "Work in progress na cena contemporânea" - [Ed. Perspectiva -SP. 1998.pág 65.]
10. Como bem observou Zeca Ligiéro (2004), “Seu Zé, com seu humor iconoclasta nos lembra de que na origem da tragédia havia Dionísio, era preciso brincar com a vida para, assim, combater com eficácia a própria morte”. "Malandro divino." Nova Era, RJ. 2004.
11. Afro-Butoh é uma pesquisa estética em dança contemporânea que associa a dança Butoh e sua pesquisa corporal - de origem japonesa, nascida na década de 50- juntamente a uma estética e percepção cosmogônica da Cultura Africana. Desde os anos 90 desenvolvida e investigada pelo diretor Calé Miranda e a pesquisadora Cátia Costa e pela Cia da Ação em seus trabalhos e treinamentos psicofísicos. [nota do autor]
12. O termo Afrofuturismo , pelo autor, aqui livremente associado, refere-se aos perceptos refletidos no livro de Paul Gilroy, "O Atlântico Negro : Modernidade e dupla consciencia". 2001, e prefaciados pela antropóloga Eufrázia Cristina Menezes Santos em Rev. Antropol. vol.45 no.1 São Paulo 2002
termo este, que se refere metaforicamente às estruturas transnacionais criadas na modernidade que se desenvolveram e deram origem a um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e trocas culturais. A formação dessa rede possibilitou às populações negras durante a diáspora africana formarem uma cultura que não pode ser identificada exclusivamente como caribenha, africana, americana, ou britânica, mas todas elas ao mesmo tempo. Trata-se da cultura do Atlântico Negro, uma cultura que pelo seu caráter híbrido não se encontra circunscrita às fronteiras étnicas ou nacionais.Na formação de uma transcultura negra que possa relacionar, combinar e unir as experiências e os interesses dos negros em várias partes do mundo.
Georger Sander
Mônica Izidoro
Saulo Gomes
Calé Miranda
Carla Biolchini
Fátima Colin
Kátia Kirino
Mariana Quinteiro