Este texto tem como objetivo a minha reflexão pessoal acerca da Performance “Orum-Ayê-Orum”. Para norteá-la, não utilizei um referencial teórico, parti apenas de alguns levantamentos internos: como me senti, como interagi com os colegas atores e com a platéia, o que penso sobre performance, mitologia afro brasileira e butoh.
Para mim, toda experiência artística é um mergulho dentro de si. Vejo, sinto e vivo a arte como uma ponte para o desenvolvimento de múltiplas habilidades, entre elas, a que mais me atrai é o autoconhecimento. Desde que nascemos somos separados da nossa essência primitiva para aprender o convívio social e suas regras. Ao longo da vida, somos levados a acreditar em um determinado Deus, somos impelidos a um comportamento social que não aceita o “diferente”, somos medidos mais pelo que temos ou podemos ter do que pelo que somos ou podemos ser. Ser é apenas uma idealização do consumo, um apelo da imagem.
Mas o ser humano tem sim seu lado primitivo, sua essência primordial, que nos distingue de outros seres humanos e nos joga nesta contradição entre a consciência coletiva e a consciência individual. Sempre que existe uma brecha, esta natureza primitiva revela-se e nos alimenta daquilo que verdadeiramente somos. A arte tem este caminho para mim. Ele não só dá brechas, como abre as portas e as janelas para outra percepção de mundo. É neste mundo que consigo me encontrar e dançar comigo mesma e com os outros.
Sobre a entrada do butoh na minha história: Em janeiro de 2010, eu estava me dedicando à dança do ventre, e pude participar do workshop “Orixás Urbanos”, da “Cia. Da Ação!”. O workshop teve um impacto na minha vida que só fui perceber tempos depois, quando comecei a tentar juntar o butoh e dança afro com a dança do ventre, a dança do ventre com forró, o butoh com o clown e por aí adiante. Pode parecer confuso, mas aquilo tudo ficou marcado no meu corpo, na minha mente e na minha alma.
É-me difícil mudar os padrões dos meus movimentos e dos meus pensamentos. Como deixar de fazer movimentos belos e circulares para ficar me estrebuchando e fazendo caretas? Como deixar o corpo mandar no movimento ao invés da mente? Ainda são esses meus maiores desafios. Por outro lado, ao entender que o butoh é uma expressão da crise do corpo, da luz e da sombra, uma dança de tensões, passo logo a entender e buscar meus padrões corporais que evocam esta crise, esta tensão, tudo que está escondido na escuridão de uma sombra de uma vida toda. Particularmente esta proposta me levou aos maiores conflitos que tenho com meu corpo: as dores, os desvios de coluna, a auto-imagem e a limitação da capacidade de expressão corporal. É dolorido mas é necessário, e o resultado é algo que vai além da minha percepção, pois alcança outras pessoas como expressão artística.
Em relação à mitologia afro brasileira, tenho muita curiosidade artística. Reconheço o candomblé como religião e tenho um respeito enorme com seus ritos e crenças, mas confesso que conheço pouco desta religião, assim como grande parte da população cristã do país. Além de pouco conhecimento, existe muita discriminação e muito charlatanismo que denigrem a imagem desta religião. Como mitologia, é de uma riqueza imensurável. A história do candomblé é a história do Brasil. Mesmo assim, é uma mitologia que não tem o espaço que merece na nossa sociedade. As representações, os símbolos, as danças, as cores, as histórias e as músicas possuem um potencial artístico muito grande, que fascina a cada descoberta e a cada identificação.
Sobre a identificação, acabei me deixando levar pelas águas do mar, pelas mãos da grande Mãe Iemanjá. Acredito que isso se deu por uma série de fatores: as cores que a representam, os símbolos que a cercam, sua história, sua ligação com o elemento água, suas características como beleza, leveza, altivez, força e seu arquétipo de grande mãe dos orixás, aquela que gera a vida, que oferece o alimento, que é fecunda.
Acredito que existe um histórico débito da nossa sociedade com a mitologia afro brasileira. Este resgate é urgente e necessário, pois a identidade cultural e religiosa de um povo não deve viver na subalternidade. Sinto-me prestigiada ao ter a oportunidade de fazer esta bela homenagem ao povo dos Orixás!
Já a Performance é uma manifestação artística que muito me atrai pelo fato de extravasar as salas e paredes dos museus, por ter o corpo como instrumento de arte, por ter um fundamento de subversão do status “quo”, na medida em que os seus praticantes sempre buscam uma interferência, uma mudança do ambiente através de uma práxis, ou seja: uma ação com conteúdo, com intenção. Performar é para mim um ato de liberdade, um ato de aproximação com o expectador, uma forma de arte completa.
A Performance “Orum-Ayê-Orum” foi um presente que ganhei do grupo participante do Experimento Afro-Butoh. Primeiro porque o trabalho foi feito de corpo, mente, alma e coração. A força da intenção do ato, contida na perspectiva do butoh, torna tudo muito intenso. A energia e a sinergia do grupo foram vivenciadas fisicamente, vibrantes e cheias de cores. A reação de estranhamento, perplexidade e curiosidade do público me levam a considerar que algo os tocou, algo dentro de cada um saiu de um lugar para o outro.
Senti algumas das minhas limitações durante a execução da performance, como as dores fortes no joelho, a timidez e a insegurança. Mas tentei utilizar tudo isso em alimento para ela, afinal, é a dança das tensões, da escuridão. Iemanjá me deu movimentos de água e de leveza, outras vezes de fluidez violenta. Deu-me a “beleza” de suas formas e cores para que eu pudesse criar um figurino minimalista, apesar de brilhante. Aprendi que o grupo é a maior liderança da performance, não adianta querer ser apenas autoral neste tipo de trabalho. Cada integrante possui sua própria forma de trabalhar a dança, forma esta criativa e pessoal, mas acredito que o grupo conseguiu fazer a ponte entre o pessoal e o coletivo.
Para finalizar, falo rapidamente de uma performance que apresentei no Projeto Desperdício Zero – 3ª edição/ 2011 do Ateliê Porto das Artes. Nesta apresentação, me propus a dançar uma poesia que eu escrevi há cerca de 6 (seis) anos atrás e reescrevi este ano, baseada nas minhas impressões sobre o meu desenvolvimento pessoal junto ao grupo do Experimento afro-butoh. A poesia foi escrita em volta de um espelho e a performance foi executada em frente a ele.
OLHOS LÍQUIDOS
Meus olhos líquidos
Têm a cor verde do mar
Onde derramo toda noite
Minha sede de amor
Meu olhar de cortina d’água
Cai em queda livre
Desliza na areia do mar...
Ouço a espuma sussurrar:
SSSSSSSSSSSsssssssss....
Silêncio. Ela quer dizer
Os olhos derramam lágrimas
Que borram a face de negro
Tinge-se o cristalino espelho
No qual vejo meu oposto similar
Apenas um corpo dançando?
Uma dança que expande no ar?
Um corpo que é rocha inerte
Nunca pára de dançar
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Kátia Kirino - Performer |