quinta-feira, 25 de agosto de 2011

MINHAS CRISES E O CORPO EM CRISE

Por: Kátia Kirino

Este texto tem como objetivo a minha reflexão pessoal acerca da Performance “Orum-Ayê-Orum”. Para norteá-la, não utilizei um referencial teórico, parti apenas de alguns levantamentos internos: como me senti, como interagi com os colegas atores e com a platéia, o que penso sobre performance, mitologia afro brasileira e butoh.
Para mim, toda experiência artística é um mergulho dentro de si. Vejo, sinto e vivo a arte como uma ponte para o desenvolvimento de múltiplas habilidades, entre elas, a que mais me atrai é o autoconhecimento. Desde que nascemos somos separados da nossa essência primitiva para aprender o convívio social e suas regras. Ao longo da vida, somos levados a acreditar em um determinado Deus, somos impelidos a um comportamento social que não aceita o “diferente”, somos medidos mais pelo que temos ou podemos ter do que pelo que somos ou podemos ser. Ser é apenas uma idealização do consumo, um apelo da imagem.
Mas o ser humano tem sim seu lado primitivo, sua essência primordial, que nos distingue de outros seres humanos e nos joga nesta contradição entre a consciência coletiva e a consciência individual. Sempre que existe uma brecha, esta natureza primitiva revela-se e nos alimenta daquilo que verdadeiramente somos. A arte tem este caminho para mim. Ele não só dá brechas, como abre as portas e as janelas para outra percepção de mundo. É neste mundo que consigo me encontrar e dançar comigo mesma e com os outros.
Sobre a entrada do butoh na minha história: Em janeiro de 2010, eu estava me dedicando à dança do ventre, e pude participar do workshop “Orixás Urbanos”, da “Cia. Da Ação!”. O workshop teve um impacto na minha vida que só fui perceber tempos depois, quando comecei a tentar juntar o butoh e dança afro com a dança do ventre, a dança do ventre com forró, o butoh com o clown e por aí adiante. Pode parecer confuso, mas aquilo tudo ficou marcado no meu corpo, na minha mente e na minha alma.
É-me difícil mudar os padrões dos meus movimentos e dos meus pensamentos. Como deixar de fazer movimentos belos e circulares para ficar me estrebuchando e fazendo caretas? Como deixar o corpo mandar no movimento ao invés da mente? Ainda são esses meus maiores desafios. Por outro lado, ao entender que o butoh é uma expressão da crise do corpo, da luz e da sombra, uma dança de tensões, passo logo a entender e buscar meus padrões corporais que evocam esta crise, esta tensão, tudo que está escondido na escuridão de uma sombra de uma vida toda. Particularmente esta proposta me levou aos maiores conflitos que tenho com meu corpo: as dores, os desvios de coluna, a auto-imagem e a limitação da capacidade de expressão corporal. É dolorido mas é necessário, e o resultado é algo que vai além da minha percepção, pois alcança outras pessoas como expressão artística.
Em relação à mitologia afro brasileira, tenho muita curiosidade artística. Reconheço o candomblé como religião e tenho um respeito enorme com seus ritos e crenças, mas confesso que conheço pouco desta religião, assim como grande parte da população cristã do país. Além de pouco conhecimento, existe muita discriminação e muito charlatanismo que denigrem a imagem desta religião. Como mitologia, é de uma riqueza imensurável. A história do candomblé é a história do Brasil. Mesmo assim, é uma mitologia que não tem o espaço que merece na nossa sociedade. As representações, os símbolos, as danças, as cores, as histórias e as músicas possuem um potencial artístico muito grande, que fascina a cada descoberta e a cada identificação.
Sobre a identificação, acabei me deixando levar pelas águas do mar, pelas mãos da grande Mãe Iemanjá. Acredito que isso se deu por uma série de fatores: as cores que a representam, os símbolos que a cercam, sua história, sua ligação com o elemento água, suas características como beleza, leveza, altivez, força e seu arquétipo de grande mãe dos orixás, aquela que gera a vida, que oferece o alimento, que é fecunda.
Acredito que existe um histórico débito da nossa sociedade com a mitologia afro brasileira. Este resgate é urgente e necessário, pois a identidade cultural e religiosa de um povo não deve viver na subalternidade.  Sinto-me prestigiada ao ter a oportunidade de fazer esta bela homenagem ao povo dos Orixás!
Já a Performance é uma manifestação artística que muito me atrai pelo fato de extravasar as salas e paredes dos museus, por ter o corpo como instrumento de arte, por ter um fundamento de subversão do status “quo”, na medida em que os seus praticantes sempre buscam uma interferência, uma mudança do ambiente através de uma práxis, ou seja: uma ação com conteúdo, com intenção. Performar é para mim um ato de liberdade, um ato de aproximação com o expectador, uma forma de arte completa.
A Performance “Orum-Ayê-Orum” foi um presente que ganhei do grupo participante do Experimento Afro-Butoh. Primeiro porque o trabalho foi feito de corpo, mente, alma e coração. A força da intenção do ato, contida na perspectiva do butoh, torna tudo muito intenso. A energia e a sinergia do grupo foram vivenciadas fisicamente, vibrantes e cheias de cores. A reação de estranhamento, perplexidade e curiosidade do público me levam a considerar que algo os tocou, algo dentro de cada um saiu de um lugar para o outro.
Senti algumas das minhas limitações durante a execução da performance, como as dores fortes no joelho, a timidez e a insegurança. Mas tentei utilizar tudo isso em alimento para ela, afinal, é a dança das tensões, da escuridão. Iemanjá me deu movimentos de água e de leveza, outras vezes de fluidez violenta. Deu-me a “beleza” de suas formas e cores para que eu pudesse criar um figurino minimalista, apesar de brilhante. Aprendi que o grupo é a maior liderança da performance, não adianta querer ser apenas autoral neste tipo de trabalho. Cada integrante possui sua própria forma de trabalhar a dança, forma esta criativa e pessoal, mas acredito que o grupo conseguiu fazer a ponte entre o pessoal e o coletivo.
Para finalizar, falo rapidamente de uma performance que apresentei no Projeto Desperdício Zero – 3ª edição/ 2011 do Ateliê Porto das Artes. Nesta apresentação, me propus a dançar uma poesia que eu escrevi há cerca de 6 (seis) anos atrás e reescrevi este ano, baseada nas minhas impressões sobre o meu desenvolvimento pessoal junto ao grupo do Experimento afro-butoh. A poesia foi escrita em volta de um espelho e a performance foi executada em frente a ele.


OLHOS LÍQUIDOS
Meus olhos líquidos
Têm a cor verde do mar
Onde derramo toda noite
Minha sede de amor

Meu olhar de cortina d’água
Cai em queda livre
Desliza na areia do mar...
Ouço a espuma sussurrar:

SSSSSSSSSSSsssssssss....
Silêncio. Ela quer dizer

Os olhos derramam lágrimas
Que borram a face de negro
Tinge-se o cristalino espelho
No qual vejo meu oposto similar

Apenas um corpo dançando?
Uma dança que expande no ar?

Um corpo que é rocha inerte
Nunca pára de dançar

Kátia Kirino - Performer

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

EM BUSCA DE UM TEMA, UM MOTIVO, UM ASSUNTO PARA CRIAR UM ESPETÁCULO

Calé Miranda - Performance Orum-Ayê-Orum
Por Calé Miranda


Nosso experimento começou sem pretensão. Éramos 7, na verdade um grupo de 7 performers + um diretor, todos interessados em explorar minhas idéias- até então particulares- sobre as possibilidades de fazer dialogar mitologia afro-brasileira e butoh japonês. Quase sem querer criamos a performance “Orum-Ayê-Orum”, que temos o prazer de seguir apresentando em diferentes lugares. Estes quatro primeiros meses serviram como introdutórios de uma disciplina até então desconhecida pela maioria do grupo. Hoje o grupo conta com onze performers e continuam os pedidos de gente interessada em experimentar o afro-butoh conosco. Quase sempre aceitamos este pedido uma vez que o trabalho é tão pessoal e intenso e o grupo é tão absorvente que o candidato ou desiste na segunda aula ou considera-se no grupo “desde criancinha”.

Partimos agora para uma nova fase: vamos realizar quatro workshops temáticos a fim de descobrir um possível assunto para pesquisa de espetáculo. Pretendemos a cada quatro semanas nos aprofundar num assunto determinado, estudando o tema em nossos corpos e na teoria, recebendo palestrantes e oficineiros, enfim, experimentando ao máximo o embrião de um possível espetáculo afro-butoh.

O primeiro workshop será: “Povo da Rua”. Estudaremos os Exus e seus significados, o caminho, a mensagem, a palavra, a esperteza. Exploraremos o universo de Pombagiras, Malandros, Zés, Ciganas; suas relações com a festa, o prazer, a musica, a ginga. Numa lembrança rápida temos a imagem de samurais e gueixas, sem-teto japoneses, sobreviventes da bomba. Cachaça e saquê, que tipo de drink isto vai dar¿ Não sabemos, mas estamos ávidos para experimentar.

Afro-butoh, Osho e a inutilidade da criação

Por Carla Biolchini

         O que me vem à memória, do momento da performance, é a reação da platéia e seu visível incomodo por ver algo que não se explica, as frases ouvidas foram diversas e divertidas, tipo: “até agora ainda não aconteceu nada, senti um incomodo que me fez parar de olhar, o que eles estão fazendo?”  “As crianças podem ver isto?” “ Nossa esta é a que me dá mais medo“, e por aí vai.
         A minha sensação era de que fazíamos algo completamente fora da compreensão de quem via, e inexplicável para quem performava, sentia-me feliz por fazer, muito feliz, havia em mim muita satisfação.
Não consigo definir o que realmente fazemos, sinto que não há certezas imutáveis neste conceito, afro- butoh para mim hoje é um experimento sensorial único, complexo, coletivo e particular.
         Há uma parábola do tarô do Osho que senti vontade de reler assim que cheguei da apresentação, ela descreve bem próximo do que hoje sinto ser o estudo do afro- butoh e as impressões vividas em mim. Foi interessante recorrer à leitura dela e associar ao nosso estudo, sinto conter aí muito butoh. Transcrevo abaixo para apreciação de todos com destaque pessoal sublinhado.

Valor
Não tente provar seu valor, reduzindo a si mesmo a uma mercadoria. Lembre-se, a maior experiência da vida não vem através do que você faz, mas através do amor, da meditação.

Lao Tzu e seus discípulos estavam viajando e chegaram a uma floresta onde centenas de lenhadores cortavam árvores. Toda floresta havia sido cortada, exceto uma grande árvore com milhares de galhos. Ela era tão grande que dez mil pessoas podiam se sentar sob sua sombra.
Lao Tzu pediu a seus discípulos que fossem perguntar por que aquela árvore foi poupada. Eles foram e perguntaram aos lenhadores, que disseram: “Essa árvore é absolutamente imprestável. Nada se pode fazer com ela, pois seus galhos têm muitos nós - nada é reto nela. Não podemos usá-la como lenha porque a fumaça é perigosa para os olhos. Essa árvore é absolutamente imprestável, por isto não a cortamos”.
Os discípulos voltaram e contaram a Lao Tzu. Ele riu e disse: “sejam como essa árvore. Se forem úteis, serão cortados e se tornarão mobília na casa de alguém. Se forem belos, serão vendidos no mercado, se tornarão uma mercadoria. Sejam como essa árvore, absolutamente inúteis... E então crescerão grandes e amplos, e milhares de pessoas encontrarão sombra sob vocês“.

Lao Tzu tem uma lógica completamente diferente da sua. Ele diz : seja o último, mova-se no mundo como se você não existisse, não seja competitivo, não tente provar seu valor - não há necessidade. Permaneça inútil e desfrute.


Tao. The Three Treasures 
 Vol. 1, págs 69-71                                                                             
 
 Medimos as pessoas pela sua utilidade. E não estou dizendo para nada fazermos de útil.  Faça coisas úteis, mas lembre-se que a verdadeira e maior experiência da vida e do êxtase vem ao se fazer o que não tem utilidade, ela vem através da poesia, da pintura, do amor, da meditação. O maior contentamento flui somente quando você é capaz de fazer algo que não pode ser reduzido a uma mercadoria. A recompensa é interior, intrínseca; ela nasce da própria atividade.
Assim de você se sente inútil, não se preocupe usarei sua inutilidade também farei de você uma árvore enorme, repleta de folhas. E as pessoas que estão envolvidas em atividades úteis precisarão, às vezes, descansar à sombra.

The Wisdom of the Sands  (A sabedoria das areias)                                                                                                    Vol. 2, págs. 308-309, 311-312

Carla Biolchini - Performance Orum-Ayê-Orum

                                                                                                     
A recompensa é interior, intrínseca; ela nasce da própria atividade.